domingo, 23 de junho de 2013
sábado, 6 de abril de 2013
quinta-feira, 28 de março de 2013
Atenaxoras PETIÇÃO EM FAVOR DOS CRISTÃOS
PETIÇÃO EM FAVOR DOS CRISTÃOS
DEDICATÓRA E INTRODUÇÃO
Aos imperadores Marco Aurélio Antonino e Lúcio Aurélio Cômodo,
armênicos, somáticos e, o que é o máximo título, filósofos.
1. Em vosso império, ó
grandes entre os reis, certas pessoas usam alguns costumes e leis, e outras
seguem outros, e a ninguém é proibido, nem por lei nem por medo de castigo,
amar suas tradições pátrias, por mais ridículas que sejam. Desse modo, o
troiano chama deus a Heitor e adora Helena, crendo que ela é Adrastéia?; o lacedemônio cultua
Agamenon como se fosse Zeus, Filonoe, filha de Tindáreo, como se fosse Enódia;
o ateniense sacrifica a Ereteu Posêidon, e os atenienses celebram iniciações e
mistérios a Agraulo e Pandroso, iniciações que foram consideradas sacrílegas
por terem aberto a caixa. Numa palavra, os homens, conforme as nações e os
povos, oferecem os sacrifícios e celebram os mistérios à vontade. Quanto aos
egípcios, têm como deuses os gatos, crocodilos, serpentes, víboras e cães. Vós
e vossas leis tolerais tudo isso, pois considerais ímpio e sacrílego não crer
de modo algum em Deus. É necessário que cada um tenha os deuses que quiser a
fim de que, por temor à divindade, se abstenha de cometer impiedades. A nós,
porém, embora não vos ofendais, como o vulgo, já ficamos sendo odiados, só em
ouvir o nome visto que não são os homens que merecem o ódio, mas a injustiça,
que merece pena e castigo. Daí que admirando a vossa suavidade e mansidão, o
vosso amor à paz e a toda humanidade, as pessoas particulares são regidas por
leis iguais, e as cidades, segundo a sua dignidade, participam também de igual
honra, e a terra inteira goza, graças à vossa inteligência, de profunda paz.
Quanto a nós, que somos chamados cristãos, não tendo providência por nós,
permitis que, sem cometer nenhuma injustiça, mas pelo contrário, como a
continuação do nosso discurso demonstrará, comportando-nos de modo mais piedoso
e justo do que ninguém, não só diante da divindade, mas também em relação ao
vosso império, permitis que sejamos acusados, maltratados e perseguidos, sem
outro motivo para que o vulgo nos combata, a não ser apenas o nosso nome.
Todavia, nós nos atrevemos a vos manifestar a nossa vida e doutrina, e com o
nosso discurso compreendereis que sofremos sem causa e contra toda lei e razão,
e vos suplicamos que também a nós deis alguma atenção, para que cesse,
finalmente, a degolação a que nos submetem os caluniadores. Com efeito, não é
perda de dinheiro que nos vem de nossos perseguidores, não é desonra no
desfrutar de nossos direitos de cidadania, não é o prejuízo em alguma das
outras coisas menores. Nós desprezamos tudo isso, por mais importante que
pareça ao vulgo. Nós aprendemos não só a não ferir aquele que nos fere, mas também
a não perseguir na justiça aqueles que nos roubam e saqueiam; mais ainda,
àquele que nos dá uma bofetada numa face, devemos oferecer-lhe a outra, e a
quem nos tira a túnica, devemos dar-lhe também o manto. Já que renunciamos às
riquezas, o que eles atentam é contra os nossos corpos e as nossas almas,
espalhando incontáveis acusações, que nem por suspeita tocam a nós; tocam sim
aos que as propagam e aos de sua laia.
2. Se alguém é capaz de
nos convencer de termos cometido uma injustiça, pequena ou grande, não
fugiremos do castigo, mas pedimos antes que se nos inflija o que for mais
áspero e cruel. Mas se a nossa acusação é tão somente o nome – e pelo menos até
hoje o que propalam sobre nós é apenas vulgar e estúpido rumor das gentes, e
não foi provado que algum cristão tenha cometido um crime – a vossa questão é,
como imperadores máximos, humaníssimos e amicíssimos do saber, rejeitar por lei
a calúnia feita contra nós, a fim de que, assim como toda a terra, pessoas
particulares e cidades gozam de vosso benefício, também nós vos possamos
agradecer, glorificando-vos por termos deixado de ser caluniados. Com efeito, a
vossa justiça não diz que, quando se acusa a outros, não se pode condená-los
antes de tê-los interrogado? Quanto a nós, porém, vale mais o nome do que as
provas do julgamento, pois os juízes não buscam averiguar se o acusado cometeu
algum crime, mas tratam-no com insolência por causa do nome, como se fosse
crime. Entretanto, em si e por si, um nome não pode ser considerado bom ou mau,
e sim que pareça bom ou mau conforme sejam boas ou más as ações que ele supõe.
Sabeis disso melhor do que ninguém, pois sois formados na filosofia e em toda a
cultura. Por isso, mesmo os que são julgados diante de vós, embora sejam
acusados dos maiores crimes, estão confiantes e, sabendo que examinais sua vida
e não atacais os seus nomes, se são vazios, nem atendeis às acusações, se são
falsas, recebem com o mesmo espírito tanto a sentença de absolvição como a de
condenação. Também nós reclamamos o direito comum, isto é, que não sejamos
odiados e castigados por termos o nome de cristãos. Definitivamente, o que o
nome tem a ver com a maldade? Reclamamos que cada um seja julgado por aquilo de
que foi acusado, e nos absolvam, se desfizermos as acusações, ou nos castiguem
se somos réus de maldade. Que não sejamos julgados pelo nome, mas pelo crime,
pois nenhum cristão é mau, a não ser que professe fingidamente o cristianismo.
Assim vemos que se procede com os filósofos. Nenhum deles, antes do julgamento,
pelo simples fato de sua ciência ou profissão, é considerado pelo juiz como bom
ou mau; pelo contrário, se é julgado injusto, é castigado, sem que por isso se
faça qualquer acusação à filosofia, pois o mau é aquele que não a professa como
é de lei; mas a ciência não tem culpa; e se ele se defende das acusações, então
é absolvido. Proceda-se de modo igual conosco. Examine-se a vida dos que são
acusados e deixe-se o nome livre de qualquer acusação.
Parece-me necessário, ó máximos imperadores, rogar-vos que, ao começar a
defesa da nossa doutrina, vos mostreis ouvintes equânimes e não vos deixeis
levar por algum preconceito, arrastados pelos rumores vulgares e irracionais,
mas que também apliqueis à nossa doutrina o vosso amor ao saber e à verdade.
Desse modo não pecareis por ignorância, e nós, livres das estúpidas intrigas do
vulgo, deixaremos de ser combatidos.
3. São três as
acusações que se propagam contra nós: o ateísmo, os convites de Tiestes, e as
uniões edípicas. Se isso é verdade, não perdoeis a classe alguma. Castigai esses
crimes, matai-nos pela raiz com nossas mulheres e filhos, se é que existe entre
os homens alguém que viva como os animais. Até os animais não atacam os de sua
espécie, unem-se entre si por lei de natureza, e apenas no tempo da procriação,
e não por dissolução e, finalmente, conhecem quem lhes faz benefício. Se
alguém, portanto, é mais feroz do que as próprias feras, que castigo
corresponderá a tantos crimes? Mas se isso é pura intriga e calúnias vazias, é
de razão natural que a maldade se oponha à virtude e de lei divina que os
contrários lutem entre si, e vós sois testemunhas de que nós não cometemos
nenhum desses crimes, mandando que não confessássemos, a vós cabe agora fazer
uma investigação sobre a nossa vida e doutrinas, sobre a nossa lealdade e obediência
à vossa casa e império e, por fim, conceder-nos o mesmo que àqueles que nos
perseguem. Nós os venceremos, pois estamos dispostos a dar intrepidamente até
as nossas vidas pela verdade.
I PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE
ATEÍSMO
E AFIRMAÇÃO DO MONOTEÍSMO
4. Refutarei agora cada
uma das acusações. Que não sejamos ateus, temo até chegar ao ridículo deter-me
para contestar àqueles que dizem tal coisa. Diágoras sim, era com razão
reprovado pelos atenienses por causa do seu ateísmo. Com efeito, ele não só
expunha publicamente a doutrina órfica e divulgava os mistérios de Elêusis e os
dos Cabiros, e quebrava a estátua de Herácles para com os pedaços cozer os seus
nabos, mas também diretamente afirmava que Deus não existe em absoluto. Nós,
porém, distinguimos Deus da matéria e demonstramos que uma coisa é Deus e outra
a matéria, e que a diferença entre um e outro é imensa, pois a divindade é
incriada e eterna, contemplável apenas pela inteligência e pela razão, mas a
matéria é criada e corruptível. Não é irracional chamar-nos de ateus? Com
efeito, se pensássemos como Diágoras, tendo tantos argumentos para a crença em
Deus – a ordem, a harmonia universal, a grandeza, a cor, a figura, a disposição
do mundo –, então sim teríamos com razão a fama de ímpios e haveria motivo para
sermos perseguidos. Mas a nossa doutrina admite um só Deus, criador de todo
este mundo, e ele não foi criado – pois não se cria o que existe, mas o que não
existe –, e sim ele é criador de todas as coisas por meio do Verbo que dele
procede. Portanto, sofremos ambas as coisas sem motivo, a má fama e a
perseguição.
5. A ninguém pareceu
que os poetas e filósofos eram ateus, porque especularam sobre Deus. Assim
Eurípides, duvidando completamente sobre aqueles que a preocupação comum chama
falsamente de deuses, disse: “Se é que Zeus está no céu, não deveria torná-lo
desgraçado.” Mas, dando a sua opinião sobre aquele que é cognoscível por
ciência, diz: “Vês na altura este éter imenso e que mantém a terra ao redor em
seus braços úmidos? Crê que este é Zeus; tem a este como Deus.”
Com efeito, não via daqueles nem as essências que subsistiriam sob o
nome que se lhes atribui – “Porque Zeus, seja Zeus quem for, dele sei apenas o
nome” – nem que os nomes fossem atribuídos a coisas subsistentes. Ora, onde não
há essências subsistentes, que valor têm os nomes? Este, porém, era visto pelas
obras, entendendo que o aparente é manifestação do oculto. Assim, portanto,
aquele cujas obras via e cujo espírito segura as rédeas de tudo, esse ele
compreendeu como Deus. E com ele concorda Sófocles: “Um, em verdade, um só é
Deus, que fabricou o céu e a vasta terra.” Com isso ele ensina sobre a natureza
de Deus, que enche o universo com a sua beleza, e não só onde deve estar Deus,
mas também que deve ser necessariamente uno.
6. Também Filolao, ao
afirmar que Deus fechou tudo como em uma prisão, demonstra que Deus é uno e que
está acima da matéria. Quanto a Lisis e Opsimo, um defende a Deus como o número
inefável, o outro como a diferença entre o número máximo e seu contíguo. Ora,
conforme os pitagóricos, o número máximo é o dez, pois é tetractys ou quaternário e
compreende todas as proporções aritméticas e harmônicas, e o contíguo a este é
o nove. Portanto, Deus é a mônada, isto é, uno, pois supera por um o maior em
relação ao seu contíguo inferior.
Platão e Aristóteles – aviso, antes de tudo, que não tenho a intenção de
expor com absoluto rigor as doutrinas dos filósofos, ao citar o que disseram a
respeito de Deus; com efeito, sei o quanto superais a todos por vossa inteligência
e o poder de vosso império, também sois versados em cada uma das partes da
ciência, como não o são nem os que se reservaram uma só delas; todavia, como,
sem citar nomes, era impossível demonstrar que não somos apenas nós que
encerramos Deus na mônada, recorri aos florilégios ou coleções de sentenças.
Platão, portanto, diz o seguinte: “Ao Criador e Pai de todo o universo não só é
difícil encontrá-lo, mas, uma vez encontrado, é difícil manifestá-lo a todos,”
dando a entender que o Deus incriado e eterno é um. É certo que ele conhece
outros, como o sol, a lua e as estrelas, mas conhece-os como seres criados:
“deuses de deuses, de que eu sou o artífice, e pai de obras que, se eu não
quiser, não são desatáveis, pois tudo o que é atado é desatável.” Portanto, se
Platão não é ateu, por entender que o artífice do universo é um só Deus
incriado, muito menos o somos nós, por saber e afirmar o Deus, por cujo Verbo
tudo foi fabricado e por cujo Espírito tudo é mantido. Aristóteles e sua
escola, que introduzem um só Deus como uma espécie de animal composto, dizem
que Deus é composto de alma e corpo e consideram como seu corpo o éter, as
estrelas errantes e a esfera das estrelas fixas, tudo movido circularmente; e
consideram a alma como a inteligência que dirige o movimento do corpo, sem que
ela própria se mova, sendo ela, em troca, a causa do movimento. Quanto aos
estóicos, embora nos nomes multipliquem o divino nas denominações que lhe dão,
conforme as mudanças da matéria, na realidade consideram Deus como uno. Com efeito,
se Deus é o fogo artificioso, que marcha por um caminho para a geração do mundo
e compreende em si todas as razões seminais, segundo as quais tudo se produz
conforme o destino, e se o espírito de Deus penetra o mundo inteiro, Deus é
uno, segundo eles; e chama-se Zeus, se olha o fervor da matéria; ou Hera, se o
ar; e daí por diante, conforme cada parte de matéria, por onde penetra.
7. De qualquer forma,
tratando dos princípios do universo, todos geralmente, até contra a sua
vontade, estão de acordo em que o divino é uno, e nós afirmamos que quem
ordenou todo o universo, esse é Deus. Portanto, qual é o motivo pelo qual se
permite que uns possam dizer e escrever livremente sobre Deus, conforme
queiram, e, por outro lado, haja uma lei estabelecida contra nós, justamente
nós, que podemos estabelecer por sinais e razões de verdade o que entendemos e
retamente cremos, isto é, que Deus é uno? Com efeito, os poetas e filósofos, aqui como em outros
lugares, procederam por conjecturas, movidos conforme a simpatia do sopro de Deus, cada um por sua própria alma, a buscar se era possível encontrar e
compreender a verdade. E só conseguiram entender, mas não encontrar o ser, pois
não se dignaram aprender de Deus sobre Deus, mas cada um de si mesmo. Então,
cada um dogmatizou a seu modo, não só a respeito de Deus, mas sobre a matéria,
as formas e o mundo. Nós, porém, sobre o que entendemos e cremos, temos como
testemunhas os profetas que, movidos pelo Espírito divino, falaram sobre Deus e
as coisas de Deus. Ora, vós mesmos, que por vossa inteligência e vossa piedade
em relação ao verdadeiramente divino ultrapassais a todos, direis que é
irracional aderir a opiniões humanas, abandonando a fé no Espírito de Deus, que
moveu, como seus instrumentos, as bocas dos profetas.
Demonstração racional do monoteísmo
8. Que o Deus Criador de todo este universo
seja um só desde o princípio, considerai-o do seguinte modo, a fim de que tenhais também o arrazoado
da nossa fé: Se, desde o princípio, tivesse havido dois ou mais deuses,
certamente os dois teriam tido que estar em um só e mesmo lugar ou cada um, à
parte, em seu lugar. Ora, é impossível que estivessem em um só e mesmo lugar,
porque, sendo deuses, não seriam iguais, mas, como incriados, seriam desiguais.
De fato, o criado é semelhante a seus modelos, mas o incriado não é semelhante
a nada, pois não foi feito por ninguém, nem para ninguém. Se Deus é um só, como
a mão, o olho e o pé são partes completivas de um só corpo, visto que delas se
completa um só; Sócrates, sim, enquanto criado e corruptível, é composto e
dividido em partes. Deus, porém, é incriado, impassível e indivisível.
Portanto, não é composto de partes. Contudo, se cada um deles ocupa seu próprio
lugar, sendo aquele que criou o mundo mais alto que todas as coisas e estando
acima do que ele fez e ordenou, onde estará o outro ou os outros? Com efeito,
se o mundo, que tem forma esférica perfeita, é limitado pelos círculos do céu,
o Criador desse mesmo mundo está acima de tudo o que foi criado, conservando
tudo com a sua providência, que lugar resta para o outro ou outros deuses?
Porque não está no mundo, já que pertence a outro; nem em torno do mundo, pois
o Deus Criador do mundo está acima deste. E se não está no mundo, nem em torno
do mundo (porque tudo o que rodeia este é mantido pelo Criador), onde está?
Acima do mundo e de Deus, em outro mundo e em torno a outro mundo? Mas se está
noutro e em torno de outro, já não está em torno de nós (pois não tem poder
sobre este mundo), nem é grande em si mesmo, pois está em lugar limitado. E se
não está em outro mundo, porque tudo é repleto pelo Criador do mundo, nem em
torno a outro, porque tudo é mantido por este, então, definitivamente, não
existe, pois não existe lugar onde esteja. O que é que faz, tendo outro de quem
é o mundo e estando ele acima do Criador do mundo, mas não estando nem no
mundo, nem ao redor do mundo? Existe, porém, um ponto de apoio em que se apóie
aquele que foi feito contra aquele que é? Acima dele, porém, está Deus e as
obras de Deus. E qual será o lugar, visto que o Criador preenche o que está
acima do mundo? Tem providência? Não! Não tem providência também, porque não
fez nada. Por fim, se nada faz, não tem providência, nem outro lugar onde
esteja, existe, desde o princípio, um único e só: o Deus Criador do mundo.
9. Se nos
contentássemos com esses argumentos de razão, poder-se-ia pensar que a nossa
doutrina é humana. Entretanto, nossos arrazoados são confirmados pelas palavras dos profetas. Penso que vós, que sois amicíssimos do saber e instruidíssimos, não desconheceis
os escritos de Moisés, nem de Isaías, Jeremias e outros profetas que, saindo de
seus próprios pensamentos, por moção do Espírito divino, falaram o que neles se
realizava, pois o Espírito se servia deles como flautista que sopra a flauta.
Que dizem os profetas? “O Senhor é nosso Deus; não será contado nenhum outro
com ele.” E ainda: “Eu sou Deus antes e depois, além de mim não há Deus.”
Igualmente: “Antes de mim não existiu outro Deus, e depois de mim não existirá.
Eu sou Deus e não outro além de mim.” E a respeito de sua grandeza: “O céu é o
meu trono e a terra é o escabelo de meus pés. Que casa me edificarás, ou qual é
o lugar do meu descanso?” Deixo para vós, inclinados sobre os livros deles,
examinar mais suas profecias, a fim de que, através de um raciocínio
conveniente, recuseis a calúnia contra nós.
Afirmação da fé monoteísta e trinitária
10. Desse modo, fica
suficientemente demonstrado que não somos ateus, pois admitimos um só Deus,
incriado, eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso,
compreensível à razão só pela inteligência, rodeado de luz, beleza, espírito e
poder inenarrável, pelo qual tudo foi feito através do Verbo que dele vem, e
pelo qual tudo foi ordenado e se conserva. De fato, reconhecemos também um
Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um
Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho
como fantasiam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores
do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação,
pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho
um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do espírito,
o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de
vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer “filho,” eu o direi
livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o
princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo
eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas
materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas
mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação. E o
Espírito profético concorda com o nosso raciocínio, dizendo: “O Senhor me criou
como princípio de seus caminhos para suas obras.” Com efeito, dizemos que o
mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam profeticamente, é uma emanação de
Deus, emanando e voltando como um raio de sol. Portanto, quem não se
surpreenderá ao ouvir chamar de ateus indivíduos que admitem um Deus Pai, um
Deus Filho e um Espírito Santo, que mostram seu poder na unidade e sua
distinção na ordem?[1]
E a nossa doutrina teológica não pára aqui, mas dizemos que existe uma multidão
de anjos e ministros, aos quais Deus Criador e Artífice do mundo, por meio do
Verbo que dele procede, distribuiu e ordenou, para que estivessem em torno dos
elementos, dos céus, do mundo, do que há no mundo, e cuidassem de sua boa
ordem.
11. Não vos maravilheis
de que eu exponha tão detalhadamente nossa doutrina, pois todo o meu afã de
exatidão se orienta a que não vos deixeis arrastar pela opinião vulgar e
irracional, mas que tenhais o meio de conhecer a verdade. É assim que, pelos
mesmos preceitos aos quais aderimos e que não são humanos, mas ditos por Deus e
por Deus ensinados, podemos persuadir-vos de que não somos ateus. Quais são
essas doutrinas com as quais nos nutrimos? “Eu vos digo: amai os vossos
inimigos, bendizei aqueles que vos amaldiçoam, orai pelos que vos perseguem,
para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz nascer o
seu sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos.” Permiti-me aqui,
pois este discurso foi ouvido com grandes aplausos, que prossiga com confiança,
como quem pronuncia a sua defesa diante de imperadores filósofos. Com efeito,
quem, dentre os que analisam os silogismos, solucionam os equívocos, esclarecem
as etimologias, ou que ensinam os homônimos e sinônimos, os categoremas, os
axiomas, o que é o sujeito e o que é predicado; quais desses prometem fazer
felizes os seus discípulos por essas ou semelhantes doutrinas? Quais desses têm
almas tão purificadas que amem os seus inimigos ao invés de odiá-los, e
abençoem a quem primeiro os amaldiçoou – coisa naturalíssima –, e roguem contra
aqueles que atentam contra a sua própria vida? Ao contrário, eles passam a vida
aprofundando com má intenção seus próprios mistérios, estão sempre desejando
fazer algum mal, pois professam não uma demonstração de obras, mas uma arte de
palavras. Entre nós, porém, é fácil falar a pessoas simples, artesãos e
velhinhas que, se não são capazes de manifestar a utilidade da sua religião, a
demonstram pela prática. Com efeito, não aprendem discursos de cor, e sim
manifestam boas ações: não ferir a quem os fere, não perseguir na justiça a
quem os despoja, dar a todo aquele que lhes pede e amar ao próximo como a si
mesmos.
12. Ora, se não
acreditássemos que Deus preside ao gênero humano, poderíamos levar uma vida tão
pura? Não é possível dizer. Mas como estamos persuadidos de que teremos de dar
contas de toda a nossa vida presente a Deus, que fez a nós e ao mundo,
escolhemos a vida moderada, caritativa e desprezada, pois pensamos que não
podemos sofrer mal tão grande aqui, mesmo quando nos tirem a vida e qual será a
recompensa que receberemos lá do grande juiz por uma vida mansa, caritativa e
modesta. Platão disse que Minos e Radamante julgariam e castigariam os maus.
Nós, porém, dizemos que nem o próprio Minos ou Radamante ou o pai deles
escapará do julgamento de Deus. Além disso, homens que consideram essa vida
como “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” e fazem da morte um sono
profundo e puro esquecimento – “a morte e o sono, irmãos gêmeos” – são
considerados piedosos. Nós, porém, homens que consideramos a vida presente de
curta duração e de mínima estima, que nos dirigimos pelo único desejo de
conhecer o Deus verdadeiro e o Verbo que dele procede – qual é a comunicação do
Pai com o Filho, que coisa é o Espírito, qual é a união de tão grandes
realidades, qual a distinção dos assim unidos, do Espírito, do Filho e do Pai
–; nós que sabemos que a vida que esperamos é superior a tudo quanto a palavra
pode expressar, se chegarmos até ela puros de toda iniqüidade; nós que vivemos
a nossa caridade até amar não só os nossos amigos, como diz a Escritura: “Se
amais os que vos amam e emprestais aos que vos emprestam, que recompensa
tereis?”, a nós que somos tais e vivemos tal vida para fugirmos de ser
julgados, não somos considerados religiosos?
Tudo isso são pequenas amostras de grandes coisas, poucas entre muitas,
a fim de não vos molestarmos com a prolixidade. Com efeito, os que provam o mel
ou o soro, através de uma pequena quantia, examinam se o todo é bom.
13. Contudo, já que
aqueles que nos acusam de ateísmo – vulgo que não sabe sequer em sonho que é
Deus, tão ignorantes e alheios que são à contemplação tanto da razão teológica
como da física, que medem a religião por lei de sacrifícios – nos reprovam por
não termos os mesmos deuses que as cidades, considerai, vos peço, ó
imperadores, um e outro ponto do modo que segue, e, antes de tudo, a reprovação
por não sacrificar. O Artífice e Pai deste universo não tem necessidade nem de
sangue nem de gordura, nem de perfume de flores e incensos, já que ele é o
perfume perfeito; nada lhe falta, e de nada necessita. Para ele o máximo
sacrifício é que reconheçamos quem estendeu e deu força esférica aos céus e
assentou a terra como centro, que reuniu as águas em mares e separou a luz das
trevas, quem adornou o éter com astros e fez que a terra produzisse sementes,
quem criou os animais e plasmou o homem. Considerando, pois, Deus como artífice
que contém tudo e que olha tudo com a ciência e a arte com que dirige tudo, e
levantando as nossas mãos puras para ele, que necessidade há de catástrofes?
“Os homens tratam de dobrá-los com sacrifícios e suaves súplicas, com
libação e gordura, suplicando-lhes quando alguém comete transgressão e pecado.”
Que falta me fazem os holocaustos de que Deus não necessita? E que falta me faz
apresentar oferendas, quando se deve oferecer-lhe sacrifícios incruentos, que é
culto racional?
14. Sobre o fato de não
nos aproximarmos ou termos como deuses os mesmos que as cidades têm, é palavra
totalmente idiota; mas nem aqueles que nos acusam de ateísmo por não
considerarmos como deuses aqueles aos quais de modo vão se aproximam, concordam
entre si a respeito dos deuses. Os atenienses estabelecem como deuses Celeu e
Metanira; os lacedemônios estabelecem Menelau, e a ele sacrificam e celebram
festas; os troianos, que não podem sequer ouvir seu nome, estabelecem Heitor;
os habitantes de Queos estabelecem Aristeu, que identificam com Zeus e Apolo;
os tássios estabelecem Teágenes, que cometeu homicídio nos jogos olímpicos; os
habitantes de Samos estabelecem Lisandro, depois de tantas mortes e tantos
males; os cilícios consideram Medéia e Níobe; os sículos consideram Filipe,
filho de Butacides; os amatúsios consideram Onesilau; os cartagineses
consideram Amílcar. O dia acabaria se eu tivesse que enumerar toda a multidão.
Se eles entre si não estão de acordo sobre seus próprios deuses, por que nos
acusam de não coincidir com eles? Quanto aos egípcios, a coisa chega ao ridículo.
Em suas grandes reuniões, eles batem no peito nos templos, como pelos mortos, e
lhes oferecem sacrifícios como a deuses; e ninguém estranha que introduzam
animais como deuses, raspem a cabeça quando morrem, os enterrem nos templos e
organizem lutos públicos. Se nós, portanto, por não praticar a religião como
eles, somos ímpios, todas as cidades e todas as nações são ímpias, pois não são
todos que têm os mesmos deuses.
15. Aceitemos, porém,
que todos admitissem os mesmos deuses. E daí? Se o vulgo, incapaz de distinguir
entre matéria e Deus, e de compreender a diferença que existe de uma para
outro, recorre aos ídolos feitos de matéria, deveremos também nós adorar as
estátuas para agradá-los? Nós, que distinguimos e separamos o incriado do
criado, o ser do não-ser, o inteligível do sensível, e que damos nome
conveniente a cada uma dessas coisas? Com efeito, se a matéria e Deus são a
mesma coisa, e se trata apenas de dois nomes para a mesma realidade, não
aceitando como deuses as pedras, a madeira, o ouro e a prata, cometemos uma
impiedade; contudo, se existe imensa distância entre um e outro, como do
artista para os instrumentos de sua arte, por que nos acusam? Como o oleiro e o
barro, o barro é a matéria e o oleiro é o artista, assim Deus é o artífice, e a
matéria lhe obedece em vista da arte. Mas como o barro sem a ação do artista
não pode por si mesmo converter-se em vasos, também a matéria, capaz de
qualquer forma, não teria recebido em distinção nem figura nem ornato sem a
ação do Deus artífice. Ora, nós não consideramos o vaso mais digno de honra do
que o seu fabricante, nem as taças de ouro mais dignas de honra do que aquele
que as fundiu, mas, se vemos nelas alguma habilidade artística, louvamos o
artista e é este que colhe o fruto da glória dos vasos. Do mesmo modo,
tratando-se de Deus e da matéria, não é esta que recebe a glória e a justa
honra pela ordenação do mundo, mas Deus, artífice da matéria. Assim, se
considerássemos como deuses as formas da matéria, daríamos prova de não ter o
sentido do Deus verdadeiro, equiparando o dissolúvel e corruptível ao eterno.
16. Certamente o mundo é
belo, abarca tudo com a sua grandeza, pela disposição dos astros da ecléptica e
os do setentrião, e por sua forma esférica; contudo, não é a ele, mas ao seu
artífice que se deve adorar. Com efeito, nem mesmo vossos súditos que recorrem
a vós, seus donos e senhores, dos quais podem conseguir o que necessitam, vos
deixam de honrar para deter-se na magnificência de vossa moradia; de passagem,
eles olham vosso palácio imperial e admiram sua bela feitura; contudo, a glória
e a honra eles as tributam inteiramente a vós. É de se notar que vós, os reis,
construís para vós mesmos vossas régias moradas; o mundo, porém, não foi feito
porque Deus necessitasse dele, pois Deus é tudo para si mesmo, luz inacessível,
mundo perfeito, espírito, poder, verbo. Portanto, se o mundo é um instrumento
harmonioso que se move conforme um ritmo, eu não adoro o instrumento, mas a
quem lhe dá harmonia, o faz emitir os sons e entoa o canto afinado. Nem mesmo
nos jogos públicos os atletas deixam de lado os tocadores de cítaras e coroam
as cítaras deles. Se o mundo é, como diz Platão, uma obra de Deus, admirando
sua beleza, eu me dirijo ao artista. Se é essência e corpo, como querem os
peripatéticos, não vamos deixar de adorar a Deus, causa do movimento desse
corpo, para cair nos elementos míseros e fracos, preferindo em nossas adorações
a matéria passível ao éter que, segundo eles, é impassível. E se existe quem
entende as partes do mundo como potências de Deus, não vamos prestar honras às
potências, mas ao criador e dono delas. Não peço à matéria o que ela não tem,
nem abandono a Deus para servir aos elementos, que podem apenas aquilo que lhes
é ordenado. Se é certo que são formosas à vista por perícia do artífice, nem
por isso deixam de ser perecíveis por natureza da matéria. O próprio Platão
confirma meu raciocínio. Ele diz: “O que chamamos céu e mundo, embora participe
de muitos e afortunados bens da parte do Pai, contudo, também tem a comunicação
do corpo e, por isso, é impossível que esteja isento de toda mudança.” Se,
embora admirando o céu e os elementos por causa da arte que neles resplandece,
não os adoro como a deuses, pois conheço a razão de dissolução que pesa sobre
eles, como chamarei deuses aos que eu sei que têm homens como artífices?
17. Peço-vos considereis
brevemente este ponto.[2]
(É preciso que fazendo a nossa defesa, como estou, eu apresente argumentos mais
precisos, tanto sobre os nomes, para demonstrar que são recentes, como sobre as
imagens, para ver que procedem, como se diz, de ontem e anteontem; e isso vós o
sabeis melhor do que ninguém, pois sois versados nos antigos a respeito de todo
assunto e em grau superior a todos). Portanto, digo que Orfeu, Homero e Hesíodo
são os que estabeleceram as famílias e deram os nomes aos que por eles são
chamados deuses. O próprio Heródoto o confirma: “Considero Hesíodo e Homero
quatrocentos anos mais antigos do que eu, não mais, e foram eles que
estabeleceram a Teogonia para os gregos, que deram suas denominações aos
deuses, distribuindo suas honras e ofícios e explicando suas formas.” Quanto às
suas imagens, enquanto não existiam a pintura, a plástica e a escultura, não
eram sequer concebíveis. Foi na época de Sáurio de Samos, de Cráton de Sicião,
de Cleantes de Corinto e de uma moça coríntia que foi inventada a representação
das figuras, quando Sáurio delineou um cavalo ao sol; a pintura foi quando
Cráton recobriu de cor, em uma tábua branca, as figuras de um homem e de uma
mulher. A fabricação de bonecos foi inventada pela moça: enamorada por um
homem, delineou, enquanto dormia, a figura dele na parede; depois, o seu pai,
satisfeito com a exata semelhança (sabe-se que ele trabalhava com argila), a
esculpiu, enchendo o contorno de barro. A imagem ainda é conservada em Corinto.
A esses sucederam Dédalo, Teodoro e Smilis, que inventaram a escultura e a
plástica. Na verdade, as imagens e fabricação dos ídolos têm tão pouco tempo
que é possível indicar o artífice de cada deus. Assim, foi Endoio, discípulo de
Dédalo, que fabricou a estátua de Ártemis em Éfeso, a de Atenas (ou melhor, de
Atela, pois assim a chamam os que falam misteriosamente... falo, portanto, da
antiga estátua de oliveira), e até da Sentada; Apolo Pítio é obra de Teodoro e
de Télecles; Délio e Ártemis são arte de Tecteu e de Angelião; a Hera de Argos
e a de Samos saíram das mãos de Smilis; os demais ídolos são de Fídias; a
segunda Afrodite é obra de Praxíteles; o Asclépio de Epidauro é obra de Fídias.
Numa palavra, nenhum dos ídolos pode escapar de ser fabricado por homens. Ora,
se são deuses, como não existiam desde o princípio? Como são mais recentes que
aqueles que os fabricaram? Que necessidade tinham, para nascer, dos homens e da
arte? Tudo isso, porém, é apenas terra, pedras, matéria e arte supérflua.
18. Há aqueles que dizem
que isso são apenas estátuas, mas é aos deuses que elas se referem, que as
procissões que a elas se fazem e os sacrifícios que se lhes oferecem terminam
nos deuses e a eles se dirigem, que não existe, enfim, outro meio de aproximar-se
dos deuses sem este: “os deuses são difíceis de aparecer claramente.” E que
isso seja assim, apresentam como prova as atividades de alguns ídolos. Se vos
agrada, examinemos o poder que existe em seus nomes. Antes de iniciar o meu
discurso, eu vos rogo, ó máximos imperadores, que me perdoeis se apresento
apenas raciocínios verdadeiros. O meu propósito não é refutar os ídolos, e sim
desfazer as calúnias contra nós e oferecer-vos a razão de nossa religião. Ora,
vós, por vós mesmos, poderíeis examinar o império celeste. Com efeito, como a
vós, pai e filho, vos foi posto tudo na mão ao receber o império de cima:
“Porque a alma do rei está nas mãos de Deus,” diz o Espírito profético, do
mesmo modo está submetido a um só Deus e ao Verbo que dele procede seu filho concebido
como seu inseparável. Antes de tudo, eu vos peço, portanto, que considereis
este ponto. Os deuses não existiram, conforme dizem, desde um princípio, mas
cada um deles nasceu do mesmo modo que nascemos. Nisso todos concordam, pois
Homero diz: “Ao Oceano, origem dos deuses, e à mãe Tétis.”
Orfeu, que foi o primeiro a inventar os seus nomes e explicou suas
genealogias, que contou as façanhas de cada um, e que se acredita entre o vulgo
ser o mais veraz teólogo, a quem geralmente Homero segue mais do que ninguém em
assunto de deuses, Orfeu, como dizia, também estabelece a primeira origem deles
na água: “O Oceano, que é a origem de todos.” Com efeito, segundo ele, a água
foi o princípio de tudo e da água formou-se um lodo e de ambos foi gerado um
animal, um dragão que tinha unidas uma cabeça de leão e outra de touro, e entre
as duas, um rosto de deus, cujo nome é Héracles e Crono. Héracles gerou um
enorme ovo que, cheio da força daquele que o havia gerado, rompeu-se em dois
por atrito. A parte superior transformou-se no Céu, a debaixo na Terra, e
surgiu um deus de duplo corpo. O Céu, unido com a Terra, gerou as mulheres
Cloto, Láquesis e Atropo, os homens centímanos: Coto, Giges, Briareu, e os
ciclopes Brontes, Estetopes e Arges. Mas como ficou sabendo que seria derrubado
de seu império por seus próprios filhos, acorrentou-os e atirou-os na
profundeza do Tártaro. Irritada com isso, a Terra gerou os titãs: “A augusta
Gaia gerou os filhos de Urano que chamam pelo sobrenome de titãs, pois eles se
vingaram do grande Urano estrelado.”
19. Tal é o princípio da
gênese, não só daqueles que eles consideram deuses, mas do universo todo.
Considerai, portanto, este ponto: cada um desses aos quais se atribui a
divindade, como princípio, também é forçoso que seja corruptível. De fato, se
nasceram não existindo, como dizem os que teologizam sobre eles, não existem,
porque uma coisa ou é incriada e, por conclusão, eterna, ou é criada e, por
conseguinte, corruptível. Não falo diferentemente dos filósofos: “O que é que é
sempre e não tem princípio? O que é que começa e não é nunca?” Platão,
discorrendo sobre o inteligível e o sensível, ensina que aquilo que é sempre, o
inteligível, é o incriado; e aquilo que não é, o sensível, criado, que começa a
ser e deixa de ser. Por isso, também os estóicos dizem que tudo há de perecer
numa conflagração, e voltar a ser de novo, readquirindo princípio. Ora, se,
conforme eles, existem duas causas, a eficiente, que é aquela que manda, como a
providência, e a passiva, que é aquela que muda, como matéria, e é impossível
que, mesmo governado pela providência, o mundo permaneça em um ser, desde o
momento que tem princípio, como permanecerá a constituição desses que não
existem por natureza, mas que nascem? Em que são superiores à matéria deuses que
têm a sua constituição a partir da água? Mas nem mesmo a água, segundo eles, é
princípio de tudo. (Com efeito, o que é que poderia constituir-se de elementos
simples e uniformes? Além disso, a matéria sempre necessita de artífices e o
artífice necessita da matéria. De fato, como poderiam ser feitas as imagens sem
matéria ou sem artífice?) Não há razão alguma para que a matéria seja mais
antiga do que Deus, pois é forçoso que a causa eficiente seja anterior ao que
tem princípio.
20. Ora, se o absurdo de
sua teologia ficasse na afirmação de que os deuses nascem e se constituem da
água, uma vez que demonstrei que não existe nada criado que não seja também
dissolúvel, poderia passar às outras acusações que nos fazem; de uma parte,
porém, descreveram os corpos dos deuses: um Héracles, o qual dizem que era um
dragão retorcido; os deuses de cem mãos; a filha de Zeus, que ele teve com sua
mãe Rea, também chamada Deméter, que tinha dois olhos no lugar natural e outros
dois na fronte, além de chifres e a face de animal na parte posterior do
pescoço, com o que, espantada com aquele monstro de filha, Rea fugiu sem
dar-lhe o peito. É daí que misticamente se chama Atela, ao passo que comumente
se lhe dá o nome de Perséfone e Coré, que não é a mesma que Atenas, à qual também
se chama Coré, por causa de sua virgindade. Por outro lado, também nos contaram
suas façanhas exatamente conforme eles pensam: Cronos, que cortou o membro
viril de seu pai e ele próprio o atirou de seu carro, e que matava seus filhos,
devorando os varões. Zeus, que amarrou seu pai e o atirou na profundeza do
Tártaro, como já fizera Urano com seus filhos, que lutou contra os titãs pela
supremacia e perseguiu sua mãe Rea, que recusava unir-se com ele,
convertendo-se ela em dragão, ele também em dragão e, amarrando-o com o chamado
nó de Héracles, finalmente uniu-se com ela (o símbolo da figura da união é o
bastão de Hermes). Depois Urano também se uniu com sua filha Perséfone,
forçando-a sob a forma de dragão, e dela nasceu o filho Dioniso. Tudo isso me
força a dizer o seguinte: o que há de importante ou de útil nessa história,
para que acreditemos que Cronos, Zeus, Coré e os outros sejam deuses? As
configurações de seus corpos? Contudo, que homem discreto e formado na
contemplação filosófica pode acreditar que um deus tenha gerado uma víbora?
Assim diz Orfeu: “Fanes, porém, espantosa à vista; de sua cabeça pendem os
cabelos e o seu rosto é belo de se ver, mas nas partes restantes ela é dragão
espantoso desde a altura do pescoço...”
Quem poderá admitir que o próprio Fanes, que é o deus primogênito (pois
este é o que saiu do ovo derramado), tenha corpo ou figura de dragão ou que
tenha sido devorado por Zeus, a fim de que este se tornasse imenso? Com efeito,
se em nada se diferenciam dos mais vis animais (e é evidente que a divindade
deve diferenciar-se de todo terreno e até daquilo que é separado da matéria),
não são deuses. Por que aos que nascem com forma semelhante à dos animais, têm
forma de animais e aspecto horrível?
21. Na verdade, se
dissessem apenas que seus deuses são carnais, que têm sangue, esperma, paixões
de ira e desejo, já seria o bastante para qualificar todos esses relatos de
charlatanice e coisa ridícula; de fato, em Deus não há ira, desejo, instinto ou
sêmen gerador. Podem ser de carne, mas superiores ao fastio e à cólera, e não
vejamos Atenas “irritada contra Zeus Pai, pois uma cólera feroz a arrebatara,”
e não contemplemos Hera, a quem “a cólera não lhe cabia no peito e disse;”
também superiores à tristeza: “Que dor! Estou vendo com meus olhos o homem
verdadeiramente querido perseguido em torno da muralha, e meu coração se
entristece.” De minha parte, considero como homens deseducados e torpes aqueles
que cedem à cólera e à tristeza. Com efeito, quando o “pai de homens e deuses”
se lamenta por seu filho: “Ai de mim! Pois Sarpedon, o mais querido dos homens,
foi decretado pelo destino que ele seja domado por Pátroclo, filho de Menécio”
e, com todos os seus lamentos, é incapaz de livrá-lo do perigo: “Sarpedon,
filho de Zeus, e este nem a seu filho socorre.” Quem não chamará de ignorantes
aqueles que se mostram amadores dos deuses com tais fábulas, quando, na
realidade, são ateus? Podem ser carnais, mas que Afrodite não seja ferida nem
no corpo por Diomedes: “Feriu-me o filho de Tideu, o soberbo Diomedes,” nem por
Ares na alma: “Por ser coxo, Afrodite, a filha de Zeus, sempre me despreza e
ama o horrível Hares.” Nem Hares pelo próprio Diomedes: “E lhe arrancou a bela
pele.” Ares, o espantoso nas batalhas e aliado de Zeus contra os titãs, aparece
mais fraco que Diomedes: “Ia furioso, como quando Ares brande a sua lança.”
Cala-te, Homero, pois Deus não se enfurece; tu és aquele que me apresentas Deus
como manchado de sangue e funesto para os mortais: “Ares, Ares, destruição de
mortais, manchado de sangue,” e nos contas o seu adultério e acorrentamento:
“Os dois, tendo subido ao leito, adormeceram, mas ao redor deles estenderam-se
as hábeis correntes do engenhoso Héfesto, e já não era possível mover os
membros.”
Como não rejeitar todo esse interminável charlatanismo sobre os deuses?
Urano foi castrado, Cronos foi acorrentado e jogado no Tártaro, os titãs se
rebelam, Estígia morre no decorrer da batalha (até como mortais nos apresentam
os deuses), uns se enamoram pelos outros e também se enamoram pelos homens:
“Éneas, que foi concebido pela divina Afrodite nos braços de Asquises, nas
quebradas do Ida, uma deusa deitada com um mortal.” Os deuses, porém, não amam,
nem têm paixões, porque se são deuses não são afetados pelo desejo... E se Deus
toma carne, segundo a divina economia, torna-se escravo do desejo?
“Com efeito, jamais o amor de deusa ou de mulher domou o meu coração
dentro do peito em torno derramado, nem quando amei a esposa de Ixião; nem
quando amei Dânae, a de belos tornozelos, a de Acrísio; nem quando amei a filha
do ilustre Fênix, nem quando amei Sêmele ou Alcmena em Tebas, nem quando amei
Deméter, a rainha de belas tranças, nem quando amei a gloriosa Seto, nem a ti
mesma.” Se um ser é criado, ele é corruptível, e nada tem de Deus. E chegam a
servir os homens como diaristas: “Ó palácios de Admeto, em que eu tive que
suportar e aceitar a mesa de diarista sendo um deus.” Também são boiadeiros:
“Vindo eu a esta terra, apascentei os bois de meu hóspede e salvei esta casa.”
Portanto, Admeto é superior ao deus. Ó adivinho e sábio, que predizes o futuro
para os outros! Tu não foste capaz de adivinhar a morte do teu amado, mas com a
tua própria mão mataste o teu amigo. E Ésquilo censura Apolo como falso
adivinho: “Eu acreditava que a boca divina de Febo era infalível, pois dela
brota a arte da adivinhação; e ele próprio, que entoava o hino, presente ao
convite e que me predissera isso, foi ele que matou o meu filho.”
22. Talvez se diga que
tudo isso são fantasias poéticas, e que existe uma explicação física para tudo
isso. Como diz Empédocles: “Esplêndido Zeus, e Hera que dá a vida, Aidoneu e
Néstis, que banha de lágrimas os olhos mortais.” Contudo, se Zeus é o fogo,
Hera a terra, Aidoneu o ar e Néstis a água, e tudo isso são elementos – fogo,
água, ar –, nenhum deles é Deus: nem Zeus, nem Hera, nem Aidoneu, pois a
constituição e origem de todos provém da matéria separada por Deus: “Fogo, água
e terra, a benigna altura do ar, e a amizade entre eles.”
Aquele que não pode permanecer sem a amizade, pois está confundido pela
discórdia, quem poderá dizer algo de Deus? Conforme Empédocles, a amizade é o
que manda, e os compostos são o mandado, e o que manda é o principal. De modo
que, se julgamos ser uma e a mesma a potência do que manda e do mandado, não
nos damos conta de estar tributando honra igual à matéria corruptível do ser
mutante e a Deus incriado, eterno e sempre concorde consigo mesmo.
Segundo os estóicos, Zeus é a substância fervente; Hera, que é o ar,
pois o próprio nome concorda com o som, enlaça-se consigo mesmo; Posêidon é a
bebida. Outros dão outras explicações naturais. Com efeito, uns dizem que Zeus
é o ar de dupla natureza, hermafrodita; outros dizem que ele é a ocasião que
muda o tempo em boa temperatura e que, por isso, foi o único que escapou de Cronos.
Contudo, é preciso dizer contra os estóicos: se considerais o Deus supremo como
um só, incriado e eterno, e que são compostas as coisas onde se processa a
mudança da matéria, e afirmais que o espírito de Deus, que penetra através da
matéria, recebe um ou outro nome conforme sua mudança, então as formas da
matéria se converterão em corpo de Deus e, corrompendo-se os elementos pela
conflagração, forçosamente também os nomes se corromperão junto com as formas,
permanecendo unicamente o espírito de Deus. Entretanto, quem é que considerará
como deuses corpos corruptíveis e mutáveis conforme a matéria?
Quanto aos que dizem que Cronos é o tempo e Rea a terra; que esta
concebe de Cronos e gera e que, por isso, é chamada mãe de todos; que ele gera
e devora; que a mutilação de seus órgãos sexuais é a união do macho e da fêmea
que corta e joga o sêmen na matriz e gera o homem que tem dentro o desejo, isto
é, Afrodite; que a loucura de Cronos é o giro do tempo, consumindo o animado e
o inanimado; que as correntes e o Tártaro são o tempo que muda e se torna
invisível pelas estações; contra esses dizemos: se Cronos é o tempo, então
muda; se é a estação, gira; se é as trevas, o gelo ou sua substância úmida,
nada disso permanece; a divindade, porém, é imortal, imóvel e imutável.
Portanto, nem Cronos, nem o ídolo que o representa, é deus. Quanto a Zeus, se
ele é o ar gerado de Cronos, cujo elemento masculino é Zeus e o feminino Hera
(daí que ela seja sua esposa e irmã), é mutável; se ele é a estação gira; o
divino, porém, não muda, nem decai.
Contudo, para que continuar importunando-vos com novas explicações, se
vós sabeis melhor as explicações que deram todos aqueles que sobre isso
especularam? O que entenderam sobre os deuses aqueles que, por exemplo,
escreveram sobre Atena, dizendo que ela é a inteligência que tudo penetra? Ou
sobre Ísis, que chamam de natureza da eternidade, da qual todos nasceram e pela
qual todos existem? Ou sobre Osíris, seu irmão, morto por Tifão, perto de
Pelúsio, cujos membros ela vai buscar junto com o seu filho Horo e, tendo-os
encontrado em um sepulcro, que até hoje se chama tumba de Osíris? Com efeito,
resolvendo para cima e para baixo as formas da matéria, o que fazem é
desviar-se de Deus, que se contempla pela razão, e divinizar os elementos e
suas partes, pondo-lhes diversidade de nomes. Por exemplo: a semeadura de
trigo, Osíris (do qual dizem que nos mistérios se clama a Ísis por causa do
achado dos membros ou dos frutos: “Encontramos, nos alegramos”); o fruto da
vinha, Dioniso; a própria vinha Sêmele, raio, ao calor do sol. Na verdade, os
que explicam alegoricamente os mitos, divinizando os elementos, nos dão
qualquer coisa, menos explicações do divino, pois não se dão conta de que com
aquilo que tentam defender seus deuses, confirmam ainda mais os raciocínios
contra eles. O que é que Europa e o touro, o cisne e Leda têm a ver com a terra
e o ar, para que nos venham dizer que o abominável tratamento de Zeus para com
elas representa a união da terra e do ar? Desviando-se da grandeza de Deus e
incapazes de remontar pelo raciocínio, pois não sentem simpatia pelo lugar
celeste, se consomem e se afundam nas formas da matéria, divinizam as mudanças
dos elementos, tão absurdo como alguém confundir o navio em que viaja com o
piloto que o dirige. Mas como o navio nada vale, mesmo com todos os seus
apetrechos, se não tem piloto, igualmente de nada vale a ordem dos elementos
sem a providência de Deus. De fato, nem o navio navegará por si mesmo, nem os
elementos se movimentarão sem um criador.
23. Vós, porém, que
superais a todos em inteligência, poderíeis objetar. Então por que alguns
ídolos agem, se não existem os deuses em cuja honra erguemos as imagens? Não é
verossímil que estátuas inanimadas e imóveis tenham por si mesmas alguma força
sem que alguém as mova. Desde já, nós mesmos não negamos que em determinados
lugares, cidades e povoados aconteçam algumas operações em nome dos ídolos;
entretanto, porque alguns tenham recebido proveito e outros prejuízo, não vamos
considerar deuses aqueles que agiram em um ou outro sentido, mas investigamos
cuidadosamente o motivo de crerdes que os ídolos têm alguma força e quais são
os que agem, usurpando seus nomes. Antes de tudo, porém, já que quais são os
que agem nos ídolos e que não são deuses, é preciso trazer como testemunhas
também alguns filósofos. Tales, como dizem os que conhecem a fundo suas
doutrinas, foi o primeiro que estabeleceu a divisão entre Deus, demônios e
heróis. Por Deus, ele entende a mente do mundo; por demônios, as substâncias
animadas; por heróis, as almas separadas dos homens, bons as boas, maus as más.
Platão, que em outros pontos se mostra reservado, também distingue entre o Deus
incriado, os astros fixos ou errantes, criados pelo Incriado, para enfeitar o
céu, e os demônios. Ele recusa falar desses demônios, mas quer que se acredite
nos que falaram sobre eles: “Falar da multidão de demônios e conhecer as suas
origens é tarefa que ultrapassa nossas forças, mas deve-se acreditar nos que
falaram anteriormente, já que, como dizem, são descendentes dos próprios
deuses, e é de se supor que conheçam exatamente seus ascendentes. Portanto, é
impossível não crer nos filhos de Deus, mesmo quando falam sem provas
verossímeis ou necessárias, mas, seguindo o costume, deve-se crer neles como em
pessoas que nos certificam estar nos contando a história de sua própria
família. Dessa forma, seguindo a eles, sirva isso também para nós e digamos que
a origem desses deuses é a seguinte: Da terra e do céu nasceram dois filhos: o
Oceano e Tétis; desses nasceram Forco, Cronos, Rea e todo o seu séquito; de
Cronos e Rea nasceram Zeus e Hera e todos os que sabemos que se dizem seus
irmãos, e, por fim, os outros descendentes desses.”
Entretanto, Platão, que compreendeu o Deus eterno apenas pela
inteligência e razão exeqüível; ele, que explicou os atributos que lhe convém:
seu ser real, sua unidade de natureza, o bem que dele se derrama, que é a
verdade; ele, que falou da “primeira potência,” e disse: “Em torno do rei de
todas as coisas está tudo, por causa dele tudo existe e ele é a causa de tudo;”
e da segunda e terceira: “O segundo em torno do segundo, e o terceiro em torno
do terceiro;” Platão pode considerar empresa superior às suas forças investigar
a verdade sobre os que se dizem ter nascido de coisas sensíveis do céu e da
terra? Não se pode dizer tal coisa. A verdade é que, como ele entendia ser
impossível os deuses gerarem e conceberem, pois o que nasce tem
conseqüentemente fim, mais impossível ainda seria mudar a convicção do vulgo,
que aceita os mitos sem exame ou prova. Por esse motivo, disse que estava acima
de suas forças conhecer e explicar a gênese da multidão dos demônios, pois não
podia compreender, nem explicar como os demônios possam ter nascimento. A outra
passagem sua, em que diz: “Zeus, o grande guia no céu, lança-se à marcha
conduzindo o seu carro, e atrás dele segue o exército dos deuses e demônios,”
não deve ser entendida de Zeus, o assim chamado filho de Crono, pois com o seu
nome quer-se significar o Criador do universo. O próprio Platão deixa isso bem
claro. Não tendo outro termo para significar isso, usou o nome popular como
pôde, não como nome próprio de Deus, mas por razão de clareza, já que não era
possível representar para todos o Deus verdadeiro. Depois acrescentou-lhe o
qualificativo de “grande,” para diferenciar o celeste do terreno, o incriado do
criado, este mais jovem que o céu e a terra e até mais jovem que os cretenses,
que o roubaram para que não fosse devorado por seu pai.
24. Que necessidade há
de recordar-vos os poetas e examinar também outras opiniões para vós que
examinastes toda a doutrina? É suficiente acrescentar apenas uma consideração.
Mesmo quando poetas e filósofos não reconheceram que Deus é um só, mas uns
pensaram nos deuses como demônios, outros como matéria, outros como tendo sido
homens, haveria motivo para perseguir-nos, a nós que, com o nosso raciocínio
distinguimos Deus da matéria e as substâncias de um e da outra? De fato, assim
como confessamos Deus, o Filho, que é o seu Verbo, e o Espírito Santo,
identificados segundo o poder, mas distintos segundo a ordem: o Pai, o Filho e
Espírito, porque o Filho é inteligência, Verbo e sabedoria do Pai, e o
Espírito, emanação como luz do fogo, também entendemos que existem outras
potências que rodeiam a matéria e a penetram, e uma contrária a Deus. Não
porque exista algo contrário a Deus, da mesma forma que a discórdia é contrária
à amizade, conforme Empédocles, ou a noite contrária ao dia, entre os fenômenos
naturais – se alguma coisa se enfrentasse assim com Deus, cessaria completamente
de ser, pois a sua substância seria destruída pela potência e força de Deus –;
mas porque o Espírito que rodeia a matéria é contrário à sua bondade, atributo
que lhe é próprio e que coexiste com ele como o calor com o fogo, sem o qual
não pode existir – não que seja parte sua, mas é acompanhamento necessário,
identificado e compenetrado, como o vermelho com o fogo e o azul com o céu –;
Espésito, dizíamos, criado certamente espírito, por Deus, como foram por ele
criados os demais anjos, e ao qual foi confiada a administração da matéria e
das formas da matéria. Com efeito, a substância desses anjos foi criada por
Deus para providência das coisas por ele ordenadas, de modo que Deus
conservaria a providência universal e geral do universo – o domínio e o poder
sobre tudo dependeria dele, e ele dirigiria isso sozinho, indeclinavelmente,
como um navio, com o timão da sua sabedoria –; mas os anjos por ele ordenados
se encarregariam da providência particular. Do mesmo modo, porém, que os homens
têm livre-arbítrio podem optar pela virtude e pela maldade – pois se não
estivesse em seu poder a maldade e a virtude, não honraríeis os bons nem
castigaríeis os maus, quando uns se mostram diligentes e outros desleais
naquilo que lhes confiais –, assim também os anjos. Uns, que foram
imediatamente criados livres por Deus, permaneceram naquilo que Deus os criara
e ordenara; outros se orgulharam tanto de sua natureza, como do império que
exerciam, isto é, esse que é príncipe da matéria e das suas formas, e os outros
encarregados desse primeiro firmamento – e deveis saber que não afirmamos nada
sem testemunhas; expressamos apenas o que foi dito pelos profetas –; estes, por
terem caído em desejo pelas virgens e mostrando-se inferiores à carne; aquele,
por ter sido negligente e mau na administração que lhe fora confiada. Dos que
tiveram relação com virgens nasceram gigantes. Não vos maravilheis, se em parte
os poetas também falam dos gigantes, pois a sabedoria humana e a divina distam
entre si assim como a verdade dista do verossímil. Uma é celeste e outra é
terrena e, segundo o príncipe da matéria, “sabemos dizer muitas mentiras
semelhantes à verdade.”
25. Portanto, esses
anjos caídos do céu, que rondam em torno do ar e da terra, e que já não são
capazes de subir ao supraceleste, e as almas dos gigantes são os demônios, que
andam errantes ao redor do mundo e produzem movimentos semelhantes; os demônios
às substâncias que receberam, os anjos aos desejos que sentiram. Quanto ao
príncipe da matéria, como se pode ver pela experiência, ele governa e
administra de modo contrário à bondade de Deus: “Muitas vezes, uma preocupação
atravessou a minha alma. Se é o acaso, se é demônio que domina o humano, pois
contra a esperança, contra a justiça, alguns são arrancados de suas casas, sem
Deus, e outros são levados à felicidade.” Se o ser feliz ou desgraçado contra a
esperança e a justiça deixa mudo Eurípedes, de quem será uma administração das
coisas terrenas, diante da qual se pode dizer: “Vendo tudo isso, como diremos
que a raça dos deuses existe ou obedeceremos às leis?” Isso também levou
Aristóteles a dizer que as partes inferiores do céu não são governadas pela
providência, mas a verdade é que a providência eterna de Deus permanece para
nós de modo igual: “A terra, queira ou não queira, por força, produzindo erva,
engorda os meus rebanhos,” e a providência particular chega de fato e não em
aparência para os que são dignos, e os outros são providos conforme a
constituição comum das coisas, por lei da razão. O que acontece é que os
movimentos demoníacos do espírito contrário e suas operações produzem esses
impulsos desordenados que vemos arrastar os homens, uns de um modo, outros de
outro, alguns individualmente, outros por nações, alguns parcialmente, outros
em comum, segundo a razão da matéria e da simpatia com o divino; movimentos do
interior, como do exterior, que obrigaram alguns, cujas opiniões não são
desprezíveis, a pensar que todo este universo não está organizado com ordem,
mas que tudo anda revirado por um acaso irracional. Eles ignoram que, quanto à
constituição do universo, não existe nada desordenado, nem descuidado, mas cada
parte sua foi feita com razão e, por isso, nenhuma transgride a ordem que lhe
foi marcada. Quanto ao homem, se se olha para o seu Criador, também foi feito ordenadamente:
a natureza de sua origem, que tem uma só e comum razão; a organização de sua
formação, que não pode transgredir a lei que a rege; e o termo de sua vida, que
permanece igual e comum para todos, embora, segundo a razão própria de cada um
e a ação do príncipe da matéria que o domina e dos demônios que o acompanham,
cada um se dirija e se mova de modo diverso, apesar de todos terem em si o
raciocínio comum.
26. Aqueles que os
arrastam aos ídolos são esses demônios dos quais falamos, os que andam em torno
do sangue das vítimas e o lambem; mas os deuses que agradam o vulgo e dão o seu
nome às estátuas foram apenas homens, como se pode averiguar pelas histórias
que deles tratam. A prova de que são os demônios que usurpam seus nomes está na
operação que cada um exerce. De fato, aqueles que cultuam Rea, mutilam o
próprio membro viril; outros, os de Ártemis, fazem cortes ou incisões em si
mesmos; a de Tauros mata estrangeiros. Deixo de falar sobre os que se torturam
com punhais e correias de ossos, e tantas outras espécies de demônios. Não é
próprio de Deus incitar a atos contra a natureza: “Quando um demônio quer fazer
mal a um homem, primeiro lhe prejudica a inteligência.” Deus, porém, que é
absolutamente bom, é eternamente benéfico.
Que sejam uns que agem e outros em cuja honra se erguem as estátuas,
temos uma prova definitiva em Tróia e Pário. A primeira tem estátuas de
Nerilino, contemporâneo nosso; Páris tem estátuas de Alexandre e Proteu. Há
ainda na ágora ou praça pública o sepulcro e a estátua de Alexandre. Ora, as
outras estátuas de Nerilino servem de ornamento público, se é que com tais
coisas se orna uma cidade. Crê-se, porém, que uma delas dá oráculos e realiza
curas e, por isso, os troianos lhe oferecem sacrifícios, a ungem e a coroam de
ouro. Quanto às estátuas de Alexandre e Proteu (não ignorais que este se atirou
ao fogo em Olímpia), diz-se também que uma emite oráculos, e a estátua de
Alexandre – “Páris malfadado, brava figura, mulherengo” – também são oferecidos
sacrifícios e celebradas festas, como a deus propício. De fato, são Nerilino,
Proteu e Alexandre que realizam esses prodígios nas estátuas ou é a
constituição da matéria? Mas a matéria é puro bronze. Que é que o bronze pode
por si mesmo, se se pode transformá-lo em outra figura, como fez Amásis,
segundo Heródoto, com a bacia para os pés? E o que é que Nerilino, Proteu e
Alexandre têm a ver com os enfermos? O que se diz que a estátua realiza agora,
o fazia quando Nerilino vivia e até quando estava enfermo.
27. O que pensar, então?
Primeiramente, os movimentos irracionais e fantásticos da alma sobre as
aparições arrancam da matéria algumas vezes uma imagem, outras vezes outras
imagens, e outras são formadas e geradas por eles mesmos. E isso padece a alma
principalmente quando recebe o espírito material, com ele, e já não olha para
cima, para o celeste e seu Criador, mas para baixo, para o terreno e, para
fazê-lo de modo geral, quando se converte em pura carne e sangue e não em
espírito limpo. Esses movimentos irracionais e fantásticos da alma geram
imagens de frenética idolatria; e quando a alma, delicada e fácil de conduzir,
que não ouviu nem tem experiência de sólidas doutrinas, que não contemplou a
verdade nem compreendeu o Pai e Criador do universo, se imprime em si essas
falsas opiniões sobre si mesma, os demônios que rondam a matéria, gulosos como
são de gordura e sangue das vítimas e enganadores dos homens, apoderando-se
desses movimentos de falsa opinião das almas do vulgo, fazem que fantasias se
infiltrem neles, como se viessem das imagens cujos nomes usurpam, e são eles
que colhem a glória do que a alma por si mesma, imortal como é, e se move
racionalmente, ora para predizer o futuro, ora para curar o presente.
28. Talvez seja
necessário, conforme anteriormente indicado, dizer algo também sobre os nomes.
Heródoto e Alexandre, filho de Filipe, na carta à sua mãe – diz-se que tanto um
como o outro conversaram com os sacerdotes em Heliópolis, Mênfis e Tebas –
dizem ter sabido deles que seus deuses foram homens. Heródoto diz: “Tais
demonstraram que eram aqueles que as estátuas representavam, mas muito
diferentes dos deuses; antes desses homens, os deuses mandaram no Egito,
vivendo junto aos humanos, e era sempre um deles que retinha o poder, e o
último rei foi Horo, filho de Osíris, a quem os gregos chamam de Apolo. Este,
tendo destronado Tifão, foi o último que reinou no Egito. Osíris, em grego, é
Dioniso.”
Assim, portanto, tanto os outros como o último, foram reis do Egito, e
os nomes dos deuses vieram dos egípcios para os gregos. Apolo é filho de
Dioniso e de Ísis. O próprio Heródoto diz: “Dizem que Apolo e Ártemis são
filhos de Ísis e que Leto foi sua nutriz e salvadora.” Daí se vê que os
primeiros reis, de origem celeste como eram, seja por ignorância da verdadeira
piedade para com a divindade, seja por gratidão para com o seu poder, foram
tidos, como deuses junto com suas mulheres. “Agora todos os egípcios sacrificam
bois puros, assim como os bezerros; as vacas, porém, não lhes é lícito
sacrificá-las, mas estão sacrificadas a Ísis. Com efeito, a estátua de Ísis,
que representa numa mulher, tem chifres, da maneira como os gregos pintam Io.”
E o que se poderia crer melhor ao dizer isso, senão naqueles que por sucessão
de família, o filho do pai, herdam o sacerdócio e juntamente a história? De
fato, não é verossímil que os guardiães dos templos mintam, que tenham
interesse em exaltar seus ídolos, ao apresentá-los como homens.
Se Heródoto disse que os egípcios falam de seus deuses como de homens,
quando o próprio Heródoto diz: “Não estou disposto a divulgar os relatos
divinos que escutei,” não há a mais leve razão para não crer nele, como se
fosse um inventor de mitos. Mas como Alexandre e Hermes, o chamado Trismegisto,
e tantos outros mais, não fazendo a enumeração de todos, que uniram suas
próprias famílias com os deuses, já não há razão para não pensar que, sendo
homens, foram tidos como deuses. Que eles foram homens, o manifestam os mais
eruditos entre os egípcios, os quais, ao chamar de deuses o éter, a terra, o
sol e a lua, consideram os demais como homens mortais e os templos como seus
sepulcros; isso manifesta também Apolodoro em seu tratado sobre os deuses. Além
disso, Heródoto chama de mistérios os sofrimentos deles: “Já narrei
anteriormente como celebram a festa em honra de Ísis na cidade de Busíris.
Todos, homens e mulheres, se golpeiam depois do sacrifício, e a fé que milhares
de pessoas ali depositam. Todavia, não é piedoso que eu lhes diga a maneira
como se golpeiam.” Se são deuses, são imortais; mas se se golpeiam e seus
sofrimentos são mistérios, são homens. O próprio Heródoto diz: “Em Sais, no
templo de Atenas, por detrás e seguindo ao longo da parede, está o sepulcro do
deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente ocasião. Ali há
também, junto ao sepulcro, um lago com bordas de pedra, bem trabalhado e
circular, ao que me parece com a mesma extensão do que em Delos se chama
Trocóides. Nesse lago, durante a noite, fazem-se as representações de seus
sofrimentos, que os egípcios chamam de mistérios.” Não só se expõe o sepulcro
de Osíris, mas também a sua múmia: “Quando se lhes leva um cadáver, mostram-se
aos portadores modelos de mortos em madeira, imitados pela pintura; e dizem que
a mais exata delas é a do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na
presente ocasião.”
29. Também os sábios
gregos, poetas e historiadores, contam a respeito de Héracles: “Cruel! Não
respeitou a ira dos deuses, nem a mesa que lhe pusera, e depois matou seu
próprio hóspede,” isto é, Ifito. Sendo assim, é natural que fosse louco,
natural que acendesse uma fogueira e se queimasse vivo. De Asclépio, Hesíodo
conta que: “o pai dos homens e dos deuses se irritou, e acertando-o do Olimpo
com raio fuliginoso, matou Letoida, perturbando o coração de Tebo.” E Píndaro
diz: “Mas até a sabedoria é atada pelo lucro. Também ele foi desviado pelo ouro
que apareceu em sua mão por doce recompensa; mas o filho de Cronos, disparando
com suas mãos, arrebatou-lhe velozmente o alento do peito, e o ardente raio
feriu o insensato.” Portanto, ou eram deuses e não se comportavam como homens
em relação ao ouro: “Ouro, o mais belo presente para mortais, prazer que nem
uma mãe ou os filhos ofereceu.” A divindade não tem necessidade, e está acima
do desejo. Também não morreram. Ou, sendo homens, foram maus por ignorância e
se deixaram dominar pelo dinheiro. Para que falar amplamente, recordando Cástor
e Pólux ou Anfiaseu, os quais, sendo, como se diz, homens de ontem ou
ante-ontem, são considerados deuses? A própria Ino, depois de sua loucura e o
que nela sofreu, dizem que se transfomou em deusa: “aqueles que caminham
errantes pelo Ponto, a chamam Leucotéia,” assim como seu filho: “será chamado
augusto Palêmon pelos marinheiros.”
II PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES
DE IMORALIDADE, INCESTO E REFEIÇÕES BACANAIS
30. Ora, se pessoas tão
abomináveis e odiosas a Deus alcançaram a reputação de ser deuses, e Semíramis,
a filha de Derceto, mulher despudorada e criminosa, foi considerada deusa
síria, e os sírios, através de Derceto, cultuam os peixes, e através de
Semíramis as pombas – é impossível que uma mulher se transforme em pomba; a
fábula aparece em Clésias–, o que há de estranho que aqueles que exerceram
poder e tirania fossem chamados deuses por seus súditos? A Sibila (Platão
também recorda) diz: “Virá então a décima geração de míseros homens, desde que
o dilúvio caiu sobre os primeiros mortais, e reinaram Cronos, Titã e Iapeto,
filhos poderosos da terra e do céu, que os homens chamaram de Gaia e Urano,
dando-lhes nome por terem sido os primeiros entre os míseros homens;” uns por
sua força, como Héracles e Perseu; outros por sua arte, como Asclépio.
Portanto, a uns foram os súditos que tributaram honra divina, a outros
foram os governantes; uns por medo e outros por respeito tiveram parte no nome divino
(o próprio Antínoco, por benevolência de nossos antepassados para com seus
súditos, teve a sorte de ser considerado deus). Depois a posteridade os aceitou
sem qualquer prova ou exame: “Cretenses sempre mentirosos. Com efeito, ó rei,
os cretenses fabricaram o teu sepulcro. Tu, porém, não morreste.”
Calímaco, tu que crês no nascimento de Zeus recusas crer em sua
sepultura, e pensando jogar uma sombra sobre a verdade, não fazes senão
anunciar um morto mesmo àqueles que não o conhecem. Se olhas a gruta, te
lembras do parto de Rea; mas se te fixas no ataúde, lanças uma sombra sobre o
morto e já não sabes que só o Deus incriado é eterno.
Concluindo, ou os mitos do vulgo e dos poetas sobre os deuses são
indignos de fé, e então é supérfluo o culto que se lhes tributa, porque não
existem aquelas personagens sobre as quais essas fábulas tratam; ou se são
verdadeiros seus nascimentos, amores, assassínios, roubos, mutilações e
fulminações, também não existem, pois deixaram de existir, uma vez que nasceram
por não existirem antes. Com efeito, que razão há para crer em alguns relatos e
não crer em outros, quando tudo foi contado pelos poetas, com a finalidade de
glorificá-los? De fato, os que foram causa de que fossem considerados deuses ao
exaltar suas histórias, não mentiriam contando os seus sofrimentos.
Fica portanto demonstrado, segundo minhas forças, embora não conforme a
dignidade do assunto, que não somos ateus ao admitir como o Deus, Criador de
todo este universo, e o Verbo que dele procede.
31. Além disso, acusam-nos
sobre comidas e uniões ímpias, pretendendo com isso encontrar alguma razão para
nos odiar. Pensam que, amedrontando-nos, nos afastarão do nosso propósito de
vida, ou, com suas acusações exorbitantes, nos exasperarão e arrumarão intrigas
com os governantes. Isso para nós é puro jogo, pois sabemos que esse costume é
antigo e não inventado só para o nosso caso e que se realiza por uma espécie e
razão divina, isto é, que a maldade faça sempre guerra à virtude. Assim,
Pitágoras foi queimado pelo fogo com trezentos companheiros; Heráclito e
Demócrito foram exilados, um de Éfeso e o outro de Abdera, acusados de loucura;
os atenienses condenaram Sócrates à morte. Mas se todos esses não perderam a
reputação de virtude por causa da opinião do vulgo, a estúpida calúnia de
alguns contra nós não faz nenhuma sombra à retidão de nossa vida, pois temos
boa fama diante de Deus. Entretanto, quero também enfrentar essas acusações.
Sei que com o que eu disse estou defendido diante de vós. De fato,
superando a todos por vossa inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus
como regra de vida, para que cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em
sua presença, não podem ter, em pensamento, o mais leve pecado, e
acreditássemos que nada existe além desta vida presente, poder-se-ia suspeitar
que pecássemos, submetendo-nos à servidão da carne e do sangue ou sendo
dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo, porém, como sabemos, que Deus
vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto de dia como de noite, e que
ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração; acreditando, como cremos, que,
ao sair desta vida, viveremos outra melhor, contando que permaneçamos com Deus
e por Deus inquebrantáveis e superiores às paixões, com alma não carnal, mas
com espírito celeste, embora na carne; ou acreditando que, se cairmos como os
demais, espera-nos uma vida pior no fogo (porque Deus não nos criou como
rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para morrer e desaparecer); crendo
nisso, dizíamos, não é lógico que nos entreguemos voluntariamente ao mal e nos
joguemos a nós mesmos nas mãos do grande juiz para sermos castigados.
32. Não há nada de
surpreendente que falem de nós a mesma coisa que contam sobre seus deuses, pois
apresentam suas paixões como mistérios. Contudo, se querem apresentar como
crime o unir-se livre e indiferentemente, teriam de começar a rejeitar Zeus,
que teve filhos com sua mãe Rea e com sua filha Coré e cuja mulher é a própria
irmã, ou rejeitar Orfeu, o inventor de todos esses contos, que tornou Zeus mais
ímpio e abominável do que Tiestes; com efeito, este se uniu com a própria filha
através de um oráculo e pelo desejo de chegar a reinar e vingar-se. Nós, porém,
estamos tão longe de ver isso com indiferença que não nos é lícito sequer olhar
com intenção de desejo. De fato, a Escritura diz: “Aquele que olha para uma
mulher a fim de desejá-la já cometeu adultério em seu coração.” Como não
acreditar que são castos os que nada podem olhar além daquilo para o qual Deus
formou os olhos, isto é, para que fossem nossa luz, aqueles que consideram
adultério o olhar com prazer, pois os olhos foram criados para outra
finalidade, e os que serão julgados até pelos seus pensamentos? Nós nada temos
a ver com leis humanas, que qualquer malvado pode burlar (desde o começo, ó
soberano, vos assegurei que nossa doutrina era ensinamento de Deus), mas temos
uma lei e mandamento, que nos deu a nós mesmos e ao nosso próximo como medida
de justiça. Por isso, dependendo da idade, consideramos a uns como filhos e
filhas, a outros como irmãos e irmãs, e aos mais velhos tributamos honra de
pais e mães. Assim, empenhamo-nos para que aqueles aos quais damos nome de
irmãos e irmãs e outras qualificações familiares, permaneçam sem ultraje ou
corrupção em seus corpos, como nos diz também a palavra divina: “Se alguém, por
ter gostado, dá um segundo beijo...” Portanto, é preciso ser muito exato a
respeito do beijo e principalmente na adoração, porque por pouco que manchem
nossa mente nos colocam fora da vida eterna.
Indissolubilidade do matrimônio
33. Como temos esperança
na vida eterna, desprezamos as coisas da vida presente e até os prazeres da
alma, tendo cada um de nós por mulher aquela que tomou conforme as leis
estabelecidas por nós e com a finalidade de procriar filhos. Assim como o
lavrador, jogada a semente na terra, espera a colheita e não continua semeando,
do mesmo modo, para nós, a medida do desejo é a procriação de filhos.[3]
E até é fácil encontrar muitos dentre nós, homens e mulheres, que chegaram
celibatários à velhice, com a esperança de um relacionamento mais íntimo com
Deus. Se o viver na virgindade e castração aproxima mais de Deus e só o
pensamento e o desejo separa, se fugimos dos pensamentos, quanto mais não
recusaremos as obras? Nossa religião não se mede pelos discursos cuidadosos,
mas pela demonstração e ensinamento de obras: ou se permanece como nasceu, ou
não se contrai mais do que um matrimônio, pois o segundo é um adultério
decente. A Escritura diz: “Quem deixa sua mulher e casa com outra, comete
adultério,” não permitindo deixar aquela cuja virgindade desfez, nem casar-se
novamente. Quem se separa de sua primeira mulher, mesmo quando morreu, é
adúltero dissimulado, transgredindo a mão de Deus, pois no princípio Deus
formou um só homem e uma só mulher, desfazendo a comunidade da carne com a
carne, segundo a unidade para a união dos sexos.
34. Nós que somos assim
(por que devo falar o que não pode ser dito?), temos que ouvir o provérbio: “A
prostituta para a casta.” Com efeito, os que fazem mercado de prostituição e
constroem para os jovens prostíbulos para todo prazer vergonhoso; os que não
perdoam nem aos homens, cometendo atos torpes homens com homens; os que
ultrajam de mil modos os corpos mais respeitáveis e mais formosos, desonrando a
beleza feita por Deus (pois a beleza não nasce espontaneamente da terra, mas é
enviada pela mão e desígnio de Deus); esses nos atiram na cara aquilo de que
têm consciência, o que eles chamam de deuses, adúlteros e pederastas insultando
aos virgens e monógamos. Eles que vivem como peixes (pois devoram quem lhes cai
na boca, o mais forte atacando o mais fraco – isso sim é alimentar-se de carnes
humanas – e que, tendo leis estabelecidas por vossos antecessores após maduro
exame para toda a justiça, violentam-se os homens contra elas, de modo que não
são suficientes os governadores mandados por vós para os julgamentos); esses,
dizíamos, acusam os que não podem deixar de se apresentar aos que os golpeiam
nem de abençoar os que os amaldiçoam. Para nós não basta ser justos – a justiça
consiste em dar o mesmo aos iguais – mas nos é proposto que sejamos bons e
pacientes.
III PARTE: OS CRISTÃOS
NÃO SÃO ANTROPÓFAGOS
35. Quem, em plena
razão, poderia dizer que, sendo assim, somos assassinos? Não é possível
saciar-se de carne humana, se antes não matamos alguém. Se eles mentem quanto
ao primeiro ponto, mentem também quanto ao segundo. Com efeito, se lhes é
perguntado se viram o que dizem, não existe ninguém tão sem-vergonha que diga
ter visto. Entretanto, temos escravos, alguns mais outros menos, para os quais
não é possível ocultar-nos. No entanto, nenhum deles chegou a caluniar-nos com
semelhantes coisas. De fato, os que sabem que não suportamos ver uma execução
com justiça, como vão nos acusar de matar e comer homens? Quem de vós não se
entusiasma em ver os espetáculos de gladiadores ou de feras, principalmente os
que são organizados por vós? Nós, porém, que consideramos que ver matar está
próximo do próprio matar, nos abstemos de tais espetáculos. Portanto, como
podemos matar os que não queremos sequer ver para não contrair mancha ou
impureza em nós? Afirmamos que as mulheres que tentam o aborto cometem homicídio
e terão que dar contas a Deus por ele;[4]
então, por que iríamos matar alguém? Não se pode pensar que aquele que a mulher
leva no ventre é um ser vivente e objeto, conseqüentemente, da providência de
Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não expor o nascido,
crendo que expor os filhos eqüivale a matá-los, e tirar a vida ao que já foi
criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com nós mesmos, pois
servimos à razão e não a violentamos.
36. Além disso, quem crê
na ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão de
ressuscitar? Não é possível alguém acreditar que nossos corpos ressuscitarão e,
ao mesmo tempo, os coma, como se não devessem ressuscitar; pensar que a terra
devolverá seus próprios mortos e, ao mesmo tempo, pensar que aqueles que
engoliu não reclamarão. É mais verossímil o contrário, aqueles que pensam que
não se terá de dar conta desta vida, tanto faz se é boa ou má, e que não haverá
ressurreição, mas que julgam que com o corpo perece também a alma e esta como
que se apaga; é natural, dizíamos, que esses não se abstenham de nenhum atrevimento,
crêem que nada ficará sem ser examinado diante de Deus e que juntamente com a
alma será castigado o corpo que cooperou com seus impulsos e desejos
irracionais, quanto a esses não há razão para que cometam o mais leve pecado.
Se para alguém parece pura charlatanice que um corpo apodrecido, desfeito e
desaparecido torne a organizar-se, não poderia por parte daqueles que não crêem
na ressurreição imputar-nos maldade, mas ingenuidade. De fato, se nos enganamos
a nós mesmos com essas razões, não causamos prejuízo a ninguém. Entretanto, não
somos apenas nós que admitimos a ressurreição dos corpos, mas muitos filósofos
também estão conosco. Contudo, seria ocioso demonstrar-vos isso agora, a não
ser que introduzíssemos raciocínios estranhos ao nosso objetivo, falando do
inteligível, do sensível, da constituição de um e de outro, que o incorporal é
anterior aos corpos, que inteligível precede o sensível, embora não seja isso o
que primeiro encontramos, pois os corpos são constituídos de elementos incorpóreos,
conforme a acumulação do inteligível, e o sensível é constituído de elementos
inteligíveis. Segundo a doutrina de Pitágoras e de Platão, nada impede que,
realizada a dissolução dos corpos, voltem depois a organizar-se com os mesmos
elementos dos quais eram constituídos no princípio.
37. Reservemos, porém,
para outra ocasião o discurso sobre a ressurreição. Quanto a vós que, em tudo e
por tudo, por natureza e educação, sois bons, moderados, humanos e dignos do
império, inclinai vossa imperial cabeça diante de quem desfez todas as acusações
e demonstrou que somos piedosos, modestos e puros em nossas almas. Quais são os
que merecem, com mais justiça, conseguir o que pedem senão nós que rogamos por
vosso império, para que o herdeis, como é de estrita justiça, de pai para
filho, que cresça e acresça, através da submissão de todos os homens? Isso
também redunda em proveito nosso, para que, levando uma vida tranqüila e
pacífica, cumpramos animadamente tudo quanto nos é mandado.
[1] Observe-se já aí, as primeiras articulações da teologia trinitária: o
Filho de Deus é o Verbo co-eterno, intermediário único da criação; a natureza
divina do Verbo; as relações divinas interpessoais.
[3] Explicação de um princípio de “moral matrimonial” que vai fazer muita
história e mantido até hoje por parte da Igreja oficial: fim primeiro e último
do matrimônio é a procriação; todo ato conjugal, toda união sexual que não
esteja em função da procriação é pecaminosa.
[4] Princípio de moral e de não-violência ao ser indefeso de extrema
atualidade. Atitude corajosa, concepção avançada da natureza do feto como ser
vivo, objeto dos cuidados de Deus, quando o direito romano da época não o
considerava como ser vivo e não se lhe reconhecia direito de existência.
Assinar:
Postagens (Atom)